Vítima usa grafite para conscientizar sobre violência doméstica
Aos 24 anos, já casada, a carioca Panmela Castro descobriu um lado do marido que não conhecia. No
início, eram "banhos" de água gelada que ele a forçava a tomar por
meia hora como "punição" por alguma briga ou desentendimento. Depois,
ameaças de "colocar fogo na casa" – e nela também – enquanto a
perseguia borrifando inseticida em sua direção.
A jovem, no entanto, enxergava essas atitudes do companheiro como "normais".
"Meus pais vieram de uma família muito pobre, com pouco
acesso à informação, então a minha formação também foi limitada. Eu achava que
eu, como mulher, tinha que passar por isso", conta ela hoje à BBC Brasil.
Até que um dia Panmela se viu acuada no meio da sala,
enquanto sofria golpes do marido por todos os lados. Durante as agressões,
ouvia a sogra, que presenciava tudo, dizer que ela "merecia, porque não
fazia almoço, não fazia o jantar...".
"Ele fechou todas as janelas da casa, para os vizinhos
não escutarem, e ligou o som bem alto. Ficou me espancando com chute, com soco,
com tudo", diz. "Depois, fomos dormir na casa da minha sogra, e no
dia seguinte ele me levou no médico com a carteirinha do plano de saúde dela,
porque se me levasse a um hospital público, seria a minha chance de fugir.
Fiquei em cárcere privado durante uma semana".
O episódio ocorreu em 2004. Panmela conseguiu fugir do
marido com a ajuda da mãe, que a levou direto para a delegacia. De lá, saiu sem
qualquer esperança de ver seu agressor punido.
"Não aconteceu nada. A data que eles o chamaram para depor era um feriado. Nunca deu em nada. Não existia Lei Maria da Penha na época".
"Não aconteceu nada. A data que eles o chamaram para depor era um feriado. Nunca deu em nada. Não existia Lei Maria da Penha na época".
A legislação que mudaria a forma como os casos de violência contra a mulher eram tratados no país veio em 2006 e, quando soube da novidade, Panmela quis encontrar alguma forma de levá-la às mulheres da periferia, para que casos como o seu não passassem mais impunes.
E foi no grafite que ela encontrou não só a libertação para
seu trauma, como também um instrumento de combate à violência doméstica.
"Quando eu me separei, fiquei um pouco isolada dentro
de casa, porque ele me perseguia muito. A forma que encontrei para me
ressocializar, me reinserir aí no espaço coletivo, foi através do grafite.
Porque eu saía com uns grupos de grafiteiros e me sentia protegida. Sabia que
não iria chegar um cara para me bater ali, porque eu estava com os meus colegas
para me defender".
Oficinas
Formada em Pintura pela Escola
de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Panmela
Castro se aventurou na arte de rua primeiro pela pichação, ainda no fim da
adolescência, até ser introduzida ao grafite.
Com ele, criou a chamada Rede Nami, a Rede Feminista de Arte Urbana, que, entre outras coisas, promove oficinas de conscientização da Lei Maria da Penha em escolas e comunidades pelo Rio de Janeiro.
Com ele, criou a chamada Rede Nami, a Rede Feminista de Arte Urbana, que, entre outras coisas, promove oficinas de conscientização da Lei Maria da Penha em escolas e comunidades pelo Rio de Janeiro.
"A gente vai até escolas ou até associações de moradores de comunidades para falar com meninas e mulheres. São três horas de oficina. Durante a primeira hora, a gente conversa desconstruindo a questão do gênero, informando sobre os tipos de violência contra a mulher, que muitas vezes ela não sabe que sofre", pontua a artista.
"Depois, a gente fala sobre as ferramentas da Lei Maria da Penha, sobre os direitos
das mulheres, e o que elas podem fazer para sair de uma situação de violência".
Todas as oficinas terminam com uma experiência prática das
mulheres com o grafite. A ideia é que elas façam um desenho relacionado ao tema
violência doméstica para ficar exposto no local e conscientizar quem passe por
ali. Todas as obras feitas no projeto trazem consigo o 180, o número do disque
denúncia da Central de Atendimento à
Mulher.
"As monitoras ajudam as participantes a criarem um
mural de grafite. E o mural continua ali naquele território multiplicando a
ideia", explica Panmela.
"Quanto mais mulheres conhecerem os direitos delas, são
mais mulheres exigindo que esses direitos possam acontecer".
Nas oficinas, não raros são os momentos em que as monitoras,
após ouvirem os depoimentos das participantes, precisam encaminhar mulheres
diretamente à delegacia para fazer denúncias ou até mesmo pedir proteção.
"Quando a gente vai em grupos de mulheres adultas, a
oficina é bem pesada porque surgem várias histórias. O problema é que muitas
não sabem que estão sofrendo violência. Ou acham que precisam passar por
aquilo. Muitas vezes a gente já tem que encaminhar para as medidas protetivas,
para fazer a denúncia", diz.
"É um trabalho que você tem que estar preparada
psicologicamente para fazer, porque é bem difícil. Aparece muita coisa. E
apesar de existir a lei, a gente tem que fazer funcionar. É uma luta que está
no começo ainda. Temos que trabalhar muito para fazer valer nossos direitos".
Pichação
Hoje, Panmela é reconhecida internacionalmente, com
trabalhos espalhados por mais de dez países. Já ganhou diversos prêmios, como o
de "grafiteira da década", em 2009, e foi citada como uma das 150
mulheres que sacodem o mundo pela revista Newsweek.
Mas seus primeiros rabiscos na parede foram pichações
escondidas na clandestinidade.
Sua primeira pichação, no Rio de Janeiro, decretou o apelido
que a acompanharia até hoje. "Fiz o A, de anarquia". O símbolo virou
seu nome artístico: "Anarkia Boladona".
"Através da pichação, aprendi a lidar com os problemas
de rua, sair das situações. Cresci muito presa em casa, então quando pude sair,
tive que aprender a me socializar, e a pichação foi uma forma de fazer isso".
Panmela buscava fugir dos estereótipos e estigmas de ser
mulher para "ser aceita" no grupo, formado por meninos.
"Para eu poder ser aceita ali no meio dos garotos, eu
tinha que me vestir que nem eles, falar que nem eles, tinha que me
masculinizar", lembra.
"Já tomei muito tiro (de bala de borracha), porrada com
arma, já aconteceu de tudo. A rua não é para a mulher, ela é muito perigosa para
quem tem corpo de mulher".
Preconceito
Os tempos de pichação passaram. Anos depois, Panmela
conheceu o grafite – mas viu que esse universo não era muito diferente daquele.
E sua estratégia foi a mesma: masculinizar seu jeito e sua arte para conseguir
se inserir nesse meio.
"Mulher no grafite ou pintava florzinha ou pintava
bonequinha, ou então era a namorada do grafiteiro. Tinha muito preconceito, era
horrível. Para as pessoas acreditarem que eu poderia fazer um tipo de grafite
bom, comecei a masculinizar muito essa imagem que eu produzia", explica.
"Minha arte só passou a ser feminina quando entendi a
questão da relação do poder no grafite. Porque por mais que tentasse me tornar
um homem falando, me vestindo e agindo como eles, eu nunca ia ser. A partir do
momento em que entendi isso, meu trabalho começou a ser mais político e comecei
a inserir esse feminino propositalmente nesse espaço, que é um espaço
masculino."
O cenário do grafite no Brasil, diz ela, ainda é dominado
por homens – as mulheres geralmente ficam com um espaço limitado e
marginalizado.
"Quando falo que eu sou a única mulher, não é nem que
sempre fui a única. Tem até um histórico de participação de outras mulheres.
Mas é que as mulheres, para serem aceitas, precisavam obedecer aquele padrão de
mulher doce, feminina. E quando você vem transgredindo esse padrão, existe um
choque. Quando você almeja estar ali no mesmo patamar, com o mesmo valor dos
homens, acho que é uma revolução muito grande".
As grafiteiras acabam tendo pouca visibilidade porque as
principais exposições e os grandes murais das ruas ficam dominados por artistas
homens, explica Panmela Castro.
"Existe um boicote a elas, uma tentativa de colocar a mulher numa posição
inferior à dos rapazes. Deixa o mural de oito metros para o cara pintar, e para
ela fica só o buraquinho ali do canto, por exemplo", conta.
"Existe um site no Rio chamado streetartrio.com, que é um catálogo de todo mundo que já grafitou
no Rio. Tem 700 artistas. Desses 700, só 30 são mulheres. E toda a semana a gente
envia trabalhos de mulheres para eles inserirem, eles nunca inserem".
Com a rede, a grafiteira busca dar mais visibilidade aos
trabalhos de mulheres nas ruas dando o espaço que elas não têm nos grandes
festivais. Além disso, o projeto forma novas artistas para fortalecer o grafite
feminino no cenário nacional.
"Passamos a formar artistas feministas boas para
enfrentar esse cenário. Fizemos nossas próprias exposições, nossos próprios
festivais, nossos próprios murais, botamos essas mulheres na imprensa. Criamos
uma cena paralela à cena que já existia. E através disso consegui uma
visibilidade internacional", afirma.
"Você pode ter dificuldades de encontrar
mulheres que estejam dentro da linha curatorial para colocar em um festival ou
uma exposição, mas se não existir um esforço para mudar isso, se não colocar a
mulher lá, as outras não vão ter referência para um dia poderem igualar esse
cenário".