'Tenho hiv, engravidei e meu filho não foi infectado'

Eu tinha 20 anos quando uma série de infecções inexplicáveis
levou meu médico a me perguntar: ''Andréia, você pode ter HIV''? Claro que não!
Eu namorava, nunca tinha usado drogas, não fazia parte dos grupos de risco.
Inclusive doava sangue com frequência. De qualquer forma, por garantia, fui até
o banco de sangue checar se estava tudo certo. Para meu desespero, minha última
doação tinha ficado retida por ter dado positivo para o HIV. Não acreditei!
Refiz o exame e... meu Deus, eu era soropositiva! Meu mundo desabou. Para mim e
para todos ao meu redor, o diagnóstico era sinônimo de morte. Comecei com a
medicação, mas não acreditava que melhoraria. Depressiva, me tranquei em casa.
Terminei meu namoro e sumi do trabalho. Passei seis meses assim, sem querer
viver. Mesmo já estando melhor de saúde, não conseguia acreditar que a vida
poderia ser boa com o HIV. Até que um dia o doutor me receitou um
antidepressivo e minha ficha caiu: ''Não quero remédio para ficar bem. Quero
ficar bem de verdade'', respondi. Aí ele me indicou uma ONG que trabalhava com
aids. Falar com outros portadores talvez me ajudasse a encarar a doença.
Aceitei minha
condição e comecei a lutar
Na ONG, conheci gente de todo tipo: nova, velha, homem,
mulher, gay, hétero. Reparei que todas tinham duas coisas em comum: eram
portadoras de HIV e estavam felizes. Ver essas pessoas tocando a vida e
acreditando no futuro me fez entender: eu podia continuar lutando. Ali também
fui aprendendo sobre a aids. Aos poucos, descobri que a maioria das coisas que
eu achava não era verdade e que a doença é cercada de preconceitos que não
passam de falta de conhecimento. Sabendo disso, virei ativista; fui à luta por
melhores condições de tratamento e contra o preconceito. Para começar, venci
meu próprio preconceito e me aceitei. Com isso, parei de esconder que sou
soropositiva. Passei a falar abertamente do vírus, sem medo nem vergonha.
Afinal, o que fiz de errado? Transei sem camisinha? Quem é que nunca fez isso e
pode me julgar? Claro que a maioria das pessoas não pensa assim. Perdi amigos,
recebi olhares feios e até ouvi coisas ruins. Mas não abaixei a cabeça e segui
em frente. Inclusive, com todo cara que começava a me envolver, logo revelava
minha condição – o que complicou bem minha vida amorosa, pois muitos fugiram
sem nem me conhecer direito. Mas prefiro que seja assim!
Minha carga viral
ficou indetectável
Com o HIV, passei a me cuidar melhor, a ser mais saudável.
Tomo os coquetéis – cinco remédios – de manhã e à noite, em horários que sigo
rigorosamente. Logo que comecei a me instruir, soube que, se fizer tudo
certinho, qualquer mulher soropositiva pode ser mãe. O problema é que eu, que
sempre sonhei em ser mãe, tinha um ciclo menstrual desregulado e, segundo um
médico da minha adolescência, isso era sinal de infertilidade. Que nada! Aos 25
anos decidi procurar um médico para ver isso. Eu namorava fazia quase um ano e
a gente queria ter filhos. Detalhe: ele não era soropositivo e desde o começo
sabia que eu era, mas isso nunca foi um problema. Depois de fazer uma bateria
de exames, o doutor me disse que eu poderia ter filhos normalmente. Só
precisava começar a tentar. Como eu fazia acompanhamento médico e tomava o
coquetel de remédios religiosamente, minha carga viral estava indetectável já
havia alguns anos. Com isso e a resistência alta, sem ter nenhuma outra DST, eu
podia transar sem camisinha que não contaminaria meu namorado. Isso mesmo:
apesar de muita gente nem imaginar, existe um estado em que nós, soropositivos,
não somos contagiosos! Já sobre o bebê, eu não poderia amamentar e teria de
tomar os medicamentos certos durante a gravidez. As chances de ele ser
contaminado eram de apenas 1%! Sabendo disso tudo, comecei a tentar engravidar!
A minha gravidez foi normal
Dois meses depois, comecei a ter enjoos e febre. Suspeitando
de algo na vesícula, o doutor fez um ultrassom. Não viu nada, mas descobriu que
eu estava grávida de oito semanas! Confirmei com um exame de sangue e a partir
daí foi só alegria. Alegria com cuidados, né? Se numa gestação normal a mulher
já fica fragilizada, imagine a mulher portadora de HIV. Então, mudei os
remédios do coquetel para outros mais adequados, que também não faziam mal ao
bebê. Ia ao médico duas vezes por mês e fazia exames de urina e de sangue todo
mês. Fora isso, foi uma gravidez normal. Tudo correu muito bem. Meu parto foi
agendado para a 38ª semana e fiz cesárea. O Samuel nasceu saudável e lindo,
como eu tanto havia sonhado! Naquele dia eu me senti a mulher mais feliz do
mundo. No dia seguinte tomei remédio para não ter leite e o bebê foi alimentado
com suplementos. Samuel também já começou com uma medicação para se proteger do
HIV. Porque funciona da seguinte forma: todo bebê de mãe soropositiva nasce com
as células de defesa que recebe da mãe. Depois, conforme vai criando as
próprias defesas, ele coloca para fora essas células de defesa da mãe. Assim, o
exame de um bebê costuma dar positivo para o HIV nos primeiros meses, pois ele
tem os anticorpos – que são o que o exame detecta. Mas, tomando a medicação,
ele pode negativar o vírus em até dois anos. No meu caso, sabendo disso tudo,
decidi não fazer exames no Samuel nos primeiros meses. Sabia que daria positivo
e não queria passar por isso. Esperei o primeiro ano inteiro muito nervosa, com
medo de ele estar entre o 1% que não negativa a doença.
Com um ano Samuel se
livrou do vírus
Depois dos 6 meses, cada vez que ele ia colher o exame, eu
ficava completamente nervosa. Que medo de nunca negativar! Mas para minha
alegria, quando o Samuel completou 1 ano, seu exame deu negativo! Que alívio!
Quase chorei de felicidade! Por mais que eu conviva bem com o vírus do HIV, sei
que ele traz peso, preconceito e riscos para a minha vida. Não queria isso para
o meu bebê. Isso tudo foi há seis anos. Samuel está com 7 aninhos, é uma
criança alegre, animada, brincalhona e completamente saudável. Não estou mais
com seu pai, mas em relação a isso está tudo tranquilo. Depois de ter meu
filho, minha vida ficou completa e sinto que toda mulher soropositiva deve
saber que seu sonho de ser mãe não morre com o vírus, só é preciso fazer
direito!
Andréia Fernandes,
33 anos, agente de saúde e assistente social, Pelotas, RS
Da redação
Acompanhamento especializado é a chave para não contaminar o
bebê
A carga viral fica indetectável quando a quantidade de vírus
no sangue está tão baixa (abaixo de 50 por ml de sangue) que nem aparece nos
exames. ''Nessa situação – que só se atinge tomando o coquetel – as chances de
transmitir sexualmente o vírus são quase nulas'', explica Eliana Battaggia Gutierrez, infectologista e coordenadora do programa
Municipal de DST e Aids de São Paulo. Por isso, nesse momento, a mulher pode
transar sem preservativo para engravidar. Mas atenção: sempre existe um pequeno
risco de contágio do parceiro. A transmissão do vírus para o bebê não se dá
pelo óvulo ou espermatozoide, e sim por meio da placenta, da amamentação ou no
contato com o sangue no parto. Por isso, a mãe precisa de acompanhamento
especial na gravidez e deve seguir à risca as recomendações médicas. ''Dependendo da carga viral, pode ser parto normal ou cesárea. O médico decide'',
explica Eliana. Depois que nasce, o bebê toma medicamentos por seis semanas e
não pode beber o leite materno. ''Toda criança nasce com os anticorpos da mãe.
Como o exame de aids é feito pela detecção de anticorpos, todo bebê de mãe
soropositiva dará positivo nesse exame. Mas isso não significa que ele está
infectado. Se ele não estiver com o vírus, cerca de um ano e meio após o parto
vai eliminar os anticorpos e passará a negativar nos exames'', diz a
especialista. Hoje, menos de 1% dos bebês dão positivo após esse período. A
inseminação artificial é indicada apenas para evitar o contágio do parceiro,
mas o SUS não oferece isso. Caso o homem seja soropositivo e a mulher não, a
carga dele também deve estar indetectável e a mulher precisa se tratar com
antirretrovirais para evitar o contágio – e aí a gravidez corre completamente
normal, sem riscos para o bebê. ''Outra alternativa é retirar o sêmen, tirar o
HIV dele e, então, fazer a inseminação'', encerra a infectologista.
Com acompanhamento médico e o tratamento correto, hoje o
risco de uma mãe soropositiva ter um filho infectado pelo HIV caiu de 30% para
menos de 1%, segundo dados do Ministério da Saúde. Para entrar nessa
porcentagem, a mulher precisa:
Fazer acompanhamento em um dos serviços de atenção
especializada do SUS (a lista de todos pode
ser consultada no site
www.aids.gov.br);
Estar fazendo tratamento com antirretroviral;
Estar com a carga viral indetectável;
Não estar com nenhuma DST ou doença oportunista.
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