Escapei de um marido violento, mas vi minha filha morrer nas mãos do goleiro Bruno
Conheci meu primeiro namorado – que logo se tornaria marido
– bem nova, com apenas 17 anos. No início tudo eram flores, a gente se amava e
falava em ficar junto para sempre. O Luiz Carlos tinha 24 anos era um sonho
bom: carinhoso e gentil. Fui morar com ele no mesmo ano em que o conheci. Com a
convivência pude ver uma pessoa que não conhecia: violenta e sem o menor
respeito por mim. Ele começou com a agressão verbal, passou a ser muito
grosseiro com coisas pequenas. Não demorou muito para ele avançar para a agressão
física. O Luiz me batia muito, quase todos os dias. Separamos e voltamos muitas
vezes. Eu estava cansada de apanhar, mas não conseguia sair de vez daquele
relacionamento abusivo.
Engravidei do meu
agressor
Quando estava prestes a completar 20 anos, engravidei. Ele
não gostou nada da notícia e me mandou abortar. Não acatei às suas ordens e
segui com a gravidez. As agressões não pararam nem mesmo quando eu estava
esperando uma filha dele. Tive a Eliza com 21 anos e aguentei aquele inferno
por mais quatro longos anos. Na época, eu morava em Foz do Iguaçu, no Paraná, e
tinha uma grande amiga que morava em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. A
gente sempre conversava e eu me abria com ela, que implorava para que eu
fugisse daquele ser humano! Ela me avisou que ele ia acabar me matando – e
estava coberta de razão. O que poucas pessoas compreendem é que, por mais
violenta que seja uma relação, a parte mais difícil é sair dela sozinha. Minha
amiga foi a corda que eu precisava para sair daquele poço. Quando a Eliza fez
quatro anos tomei coragem e fugi do Paraná, levando somente minha filha, uma
mala e a roupa do corpo.
Fugi para o Mato
Grosso do Sul toda machucada
Deixei minha filha na casa da minha sogra e pedi para que
cuidassem dela até eu voltar. Quando cheguei em Campo Grande, minha amiga ficou
impressionada com o estado em que eu estava, cheia de roxos e marcas, toda
machucada e com muito medo. Fiquei na casa dela durante um tempo e comecei a
fazer salgados para vender, montei uma barraca em um local movimentado da
cidade e consegui me sustentar. Quando me estabilizei, decidi voltar ao Paraná para
tirar a Eliza do pai, que estava cuidando dela, e levá-la para morar comigo. O
pai dela me disse, por telefone, que só me entregaria a Eliza se fosse aos
pedaços! Fiquei assustada e chorei muito, é difícil para uma mãe ouvir ameaças
sobre sua própria filha. Decidi não insistir na ideia de tirá-la de lá, mas
voltava com frequência ao Paraná para ver Eliza, sempre às escondidas – tinha
medo do que o Luiz poderia fazer. Ia vê-la na escola ou na casa de parentes...
Sempre dei meu jeito para ver minha menina.
Quando encontrei meu ex-marido frente a frente, Eliza já
tinha 14 anos. Ele já estava com outra mulher e tinha outra filha, foi levar
minha menina na casa do meu irmão e eu estava por lá. Fiquei tensa, mas não
senti medo. Sabia que nada ia acontecer com todas aquelas pessoas ali do meu
lado. Senti dor ao vê-lo, lembrei de tudo que ele me fez passar. Depois, um
misto de raiva e pena me invadiu – era tudo que eu podia sentir por ele ser
aquele ser humano horrível.
Eliza foi atrás do
sonho de ser modelo
Pai e filha se davam bem, mas, com 16 anos, minha filha veio
morar comigo. Mais velha, o pai já não tinha domínio sobre a vida dela. Eliza
ficou pouco tempo em casa, ela tinha o sonho de ser modelo e o Luiz prometeu a
ela um book de fotos para ingressar na profissão. Já estava tudo certo para ela
trabalhar em uma farmácia ali na cidade e continuar morando comigo, mas ser
modelo era o sonho da vida dela. É muito triste ver um filho chateado pelos
cantos e saber que você é o motivo separando ele e seus sonhos, então deixei
ela voltar para casa do pai e batalhar pela carreira. Me casei novamente,
reconstruí minha vida e falava com Eliza pelo telefone diariamente. Todo ano
fazia uma visita de quinze dias em Foz do Iguaçu.
Vivemos assim durante anos até que, em 2007, Eliza foi para
São Paulo atrás de oportunidades como modelo. Na mesma época, recebi um
telefonema da minha cunhada pedindo para avisar minha filha que o pai tinha morrido
numa troca de tiros. Fiquei surpresa com a notícia! Liguei e avisei, perguntei
se ela queria ir ao enterro. Eliza decidiu não ir e respeitei sua decisão.
Minha filha era muito reservada, apesar de comunicativa, falava pouco de sua
vida e de seus sentimentos. Quando ela se envolveu com o goleiro Bruno, não
fiquei sabendo. Eliza viajava muito entre São Paulo e Rio de Janeiro para os
trabalhos como modelo, por isso nos víamos pouco. Eliza dizia que tinha uma
novidade para me contar e imaginei que fosse uma gravidez, mas não cheguei a
saber com certeza. Pelo pouco que ela me contava, o cara com quem tinha se
envolvido estava tornando sua vida difícil. O que estava por vir eu jamais
conseguiria imaginar.
Descobri que minha
filha estava morta e meu ex-marido estava vivo
Descobri que Eliza estava morta, que o Luiz estava vivo e
soube da existência do meu neto, Bruninho, tudo de uma vez, pela televisão. Não
acreditei que aquilo estivesse acontecendo. Entendi depois que a morte do Luiz
Carlos tinha sido um grande engano: ele tinha sido dado como morto pela
imprensa e não desmentiu o boato porque enfrentava um processo judicial por
abuso sexual contra menor – ele era acusado de abusar de sua outra filha.
Fiquei sem chão. A última vez que conversei com Eliza no telefone ela falou que
jamais deixaria um filho seu, repetia isso com frequência. Então, quando
noticiaram seu desaparecimento, tive certeza de que estava morta. Quando dei
por mim, tinha perdido minha filha e meu ex-marido morto estava na TV segurando
meu neto.
A dor de perder um filho de forma tão trágica e de repente,
sem saber o paradeiro do corpo, foi a coisa mais difícil que já me aconteceu.
Fiquei dias desnorteada, sem saber o que fazer. Mas eu tinha que tomar uma
atitude em relação ao meu neto. Várias dúvidas passavam pela minha cabeça...
Será que o Luiz ia me deixar vê-lo? Eu devia trazer meu neto para morar comigo?
Não sabia o que fazer. Conversei com meu marido e ele disse para eu fazer o que
meu coração mandasse, estaria do meu lado qualquer que fosse a minha decisão.
Percebi que queria meu neto junto de mim e fui em busca de ajuda jurídica para
conseguir sua guarda. Acabei conhecendo a advogada Maria Lúcia e contei a
história para ela: a suposta morte do Luiz, ele com meu neto na TV, tudo. Ela
começou a trabalhar no caso e fomos em busca do Bruninho.
Entrei com o pedido
de guarda do meu neto
Luiz Carlos estava tão certo de que eu não iria enfrentá-lo
que ele nem havia entrado com pedido de guarda provisória, tinha somente a
autorização do abrigo para levar o menino já que tinha sido o primeiro parente
a aparecer. Chegamos prontas para reverter o processo de guarda, mas não foi
necessário: bastava entrar com o pedido pela custódia do Bruninho.
A última vez que vi Luiz Carlos foi no aeroporto de Belo Horizonte.
Eu e a Dra. Maria Lucia tínhamos perdido o voo e, por coincidência, encontramos
meu ex-marido e seu advogado no local. O representante legal dele veio falar
com a minha advogada enquanto esperávamos as bagagens, ele pedia para ela
deixar o caso de lado e não mexer no passado. Maria Lúcia afirmou que isso
estava fora de questão, a guarda do menino ia ser minha. Nem me dignei a
participar da conversa, mas ouvi meu ex-marido dizer para seu advogado: ''ela
está diferente, ela não é a mesma''. E eu não era mesmo. Luz e escuridão não se
batem e, enquanto ele permanecia nas sombras, eu era só luz – e estava
determinada a enfrentá-lo pra ficar com o Bruninho.
Bruninho é a cara do
pai, mas o coração é da Eliza
Meu neto enfrentou a morte três vezes. A primeira ainda no
útero da mãe, quando o goleiro Bruno tentou forçar o aborto. A segunda quando
foram assassinar Eliza e ficaram com dó de lhe tirar a vida também. A terceira
quando o abandonaram à própria sorte, com fome e com frio, até que policiais o
encontraram e levaram para o abrigo em que meu ex-marido o buscou. Hoje com
sete anos, ele é um menino alto e forte, o xodó da família. Apesar de a
aparência física ser idêntica ao pai, a personalidade dele é toda da Eliza.
Carinhoso, verdadeiro, alegre. Pratica esportes e frequenta a igreja, é um
menino muito disciplinado. Quando o vejo cuidando dos animais, sei que tem
caráter! Com certeza é uma pessoa 10 mil vezes melhor do que o pai.
Bondoso, é ele que me dá forças para seguir em frente.
Bruninho e meu marido se dão superbem, os dois são o maior grude. Foi por ele e
pela minha Eliza que eu enfrentei meu ex-marido em busca de justiça. Hoje,
somos uma família unida e feliz. Abriu aqui em Campo Grande, há dois anos, a
primeira Casa da Mulher Brasileira,
local que fiz questão de visitar depois de tudo que passei. A unidade atende
mulheres vítimas de violência doméstica e oferece todo o suporte necessário: Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam),
Defensoria Pública, Promotoria de Justiça, atendimento psicológico, orientação
financeira, alojamento e berço para as mulheres que têm filhos. Fiquei muito
feliz com a inauguração da Casa em 2015, lembro do suporte que precisei quando
sofri violência e me alegro em saber que outras mulheres aqui de Campo Grande
podem encontrar esse apoio. Espero que o número de unidades aumente, devia ter
uma dessa em cada capital! Por enquanto, só quero cuidar do meu neto para que
ele tenha uma vida longa e muito feliz.
Sônia Fátima Moura,
51 anos, salgadeira, Campo Grande, MS
Da redação
Assim como Sônia, Eliza
também foi coagida a interromper a gravidez e sofria agressões
constantemente. Em outubro de 2009, ela registrou um boletim de ocorrência dizendo
que sofria agressão física, ameaças e confinamento. O boletim detalha ainda que
Bruno teria obrigado Eliza a engolir comprimidos para abortar. O desfecho da
tragédia chocou o País, mas a história de violência doméstica sofrida por Eliza
e pela mãe Sônia não são exceções: a cada 24 segundos uma mulher é espancada no
Brasil (estatística mais recente da Fundação
Perseu Abramo) e, segundo dados do Mapa
da Violência, duas em cada três pessoas atendidas no SUS é em razão de
violência sexual ou doméstica.
O goleiro Bruno
Bruno Fernandes das
Dores de Souza foi acusado por assassinato e ocultação de cadáver da modelo
e ex-namorada Eliza Silva Samúdio,
além de sequestro e cárcere privado do filho Bruninho. Preso desde a morte de
Eliza, um habeas corpus foi concedido pelo ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello em fevereiro deste ano
permitindo que o jogador aguardasse o julgamento em liberdade depois de sete
anos de reclusão.
Semanas após deixar a prisão, Bruno assinou um
contrato com o time de futebol Boa
Esporte e vinha defendendo o clube mineiro nas partidas da Segunda Divisão
do Campeonato. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, enviou um parecer ao Supremo Tribunal Federal (STF)
requisitando a revogação da decisão do ministro que soltou o atleta, pedido que
pode colocar o goleiro de volta na cadeia até a conclusão do processo judicial
e possível condenação.